Quando levo a menina ao posto de saúde, ninguém me da informações ou encaminha para algum tipo de assistência. Os técnicos de saúde até têm medo de vaciná-la.
Marina nasceu há três meses e foi diagnosticada com microcefalia. Ela também tem artrogipose, um problema congênito na articulação do joelho que vem sendo associado à zika. A chegada de nossa bebê encheu a casa de um amor que não imaginávamos que existisse. Mas a missão de cuidar dela é dificultada pela falta de informação e de apoio.
Tenho 39 anos. Fui mãe muito cedo, aos 14 anos, idade que minha terceira filha tem hoje. As duas mais velhas têm 25 e 22 anos. Tenho um neto de 4 anos. Ter filhos não fazia mais parte dos meus planos. No fim de 2014, porém, tive de interromper a pílula anticoncepcional para um tratamento de varizes. Foi nessa época que engravidei de Marina.
Com oito semanas de gestação, eu e meu marido decidimos passar alguns dias de férias na casa de minha mãe, em Natal, onde nasci. Lá, tive um pouco de febre e senti muita fraqueza. Mas o que me deixou assustada foram as manchas vermelhas que surgiram no meu corpo. Procurei, então, uma clínica particular, onde encontrei várias pessoas com o mesmo quadro. Temi que fosse dengue, mas a suspeita era de chikungunha. Perguntei ao médico se havia algum risco para o bebê e ele não soube responder.
De volta ao Rio, continuei preocupada. Meu temor confirmou-se quando fiz a ultrassonografia morfológica, com 20 semanas de gestação. Meu marido estava trabalhando, então decidi levar minha filha mais nova, que estava doida pra ver sua “boneca”. Depois de três gestações, e por ser da área de saúde (Marcelli é técnica em enfermagem), eu conseguia entender alguma coisa do que aparecia no monitor. Tudo parecia bem formadinho, até que o médico começou a examinar a cabeça do bebê. Em silêncio, ele arrastava o equipamento da cabeça pra coluna, ia e voltava. Olhando para a tela, eu percebi um espaço vazio no crânio da bebê. Perguntei se tinha algo errado. Ele disse: “está vendo que estou demorando? Ela está com um ventrículo aumentado no cérebro”. Na hora, ele suspeitou de hidrocefalia (má-formação em que o bebê tem água no crânio). A associação da virose com a microcefalia ainda não tinha sido feita.
As lágrimas começaram a cair dos meus olhos e dos da minha filha. Quando saí de lá, senti o chão abrir-se debaixo de mim. Liguei para meu marido, chorando. Ele deixou o trabalho, no Hospital da Aeronáutica, onde trabalha como enfermeiro, e veio me ver. Fui orientada a repetir a ultrassonografia, em outra clínica particular, mais renomada. Vários médicos se juntaram na sala para acompanhar o exame, e lá mesmo, começaram a discutir o caso, como se fosse uma aula. Concluíram que era microcefalia. E eu ali, com minha bebê na barriga e sendo ignorada por eles, ouvindo que ela poderia nascer assim, poderia nascer assado. Sensibilidade zero. Senti-me um lixo. Foi horrível.
Fiz e refiz duas vezes vários exames para identificar doenças como toxoplasmose, rubéola, citomegalovírus e HIV, que pudessem ser associados à microcefalia. Todos tiveram resultados negativos. Não tomei vacinas antes ou durante a gestação. Fiz um exame de rastreamento genético que descartou problemas hereditários. Evangélica, dividia a angústia com amigas da igreja. Juntas, orávamos para o bebê vir com saúde. Meu marido preferia não tocar no assunto. Eu o via indo ao banheiro chorar. Os amigos comentavam como ele estava triste. Aos poucos, nos conformamos. Ninguém engravida pensando em ter um filho com problema. Eu pensava em como seria o futuro dela, se teria autonomia. Fui buscando força dentro de mim, sempre pensando que ela podia me surpreender, podia ser melhor do que o que as pessoas ou a internet falavam.
Marina nasceu no final de outubro, com 39 semanas de gestação, de cesárea, no Hospital da Aeronáutica. Seu perímetro cefálico era de 29 centímetros [abaixo de 32 centímetros a criança é considerada microcéfala]. Com dificuldade para respirar, ela não chorou e foi levada para UTI, onde ficou por dez dias. Como ninguém sabia por que ela tinha a cabeça pequena, fui orientada a procurar um neurologista. Naquela época, os casos de microcefalia ainda não haviam sido associados à zika. Começamos, então, a peregrinação para buscar as causas do problema, entender quais eram os tratamentos possíveis, fazer todos os exames – eletroencefalogramas, ressonâncias, tomografias, e, agora, a busca pela fisioterapia. Só conseguimos entender o que poderia ter acontecido quando o Ministério da Saúde divulgou a possível relação da zika com a microcefalia.
O anúncio do governo e, agora, a decretação de emergência mundial para a microcefalia em nada mudaram nossas vidas. Continuamos perdidos. Quando levo a menina para o posto de saúde para ser vacinada, ninguém me aborda para dar informações, ou para encaminhar para qualquer programa de acompanhamento ou de assistência. Pelo contrário, os técnicos de saúde até têm medo de vacinar a menina.
Por sermos da área médica, eu e meu marido procuramos informações aqui e ali. Soubemos por um amigo que a rede Sara está recebendo alguns casos. Entrei na internet e agendei a primeira consulta. Estou muito esperançosa que eles cuidem de Marina. Vai facilitar um pouco nossa vida se pudermos concentrar tudo o que ela precisa em um só lugar. Por orientação do pediatra, já começamos a fisioterapia, mas sabemos que ela precisa de mais do que tem recebido. Enquanto isso, a família toda virou fisioterapeuta. A irmã mais velha movimenta as articulações da menina. A mais nova brinca com ela como se fosse uma boneca. Ela não chora tanto, mas, quando chora, é muito alto. Ela é brava demais, e chora a noite toda.
Marina mama normalmente. Teve de largar o peito porque desenvolveu alguma reação ao leite. Tivemos de comprar leite especial. Mas ela já recuperou as curvas de peso e altura para a idade. Os testes visuais e auditivos não indicaram problemas. Ela sorri, quando brincamos com ela, e se assusta com barulhos. Ela só se perde às vezes, quando a gente chama e ela não reage. É diferente das outras filhas. Ela deve operar do joelho quando tiver seis meses.
Soube que algumas amigas de infância, em Natal, tiveram bebês com microcefalia. Minha irmã, que mora lá, diz que elas estão completamente sem assistência, e sem saber como estimular seus bebês. Eu abandonei todos os grupos de WhatsApp. Fiz laqueadura de trompas, para eliminar a possibilidade de ter outro filho. Não posso ter nada que desvie a atenção de que Marina precisa.
Eu e Eduardo pensamos diferente a respeito do futuro dela. Ele é mais cauteloso, apega-se ao que vê. Diz que talvez ela não andará. Eu creio num Deus que tudo pode. Não aceito que ela não andará. Ela será igual a qualquer pessoa, no que depender de mim. Não permito um futuro com dificuldade e, se houver, haverá também superação. Não entro na guerra para perder.
Uma coisa ruim é ter de viver com a pena e a crueldade das pessoas. Mas já tenho resposta para tudo. Tem gente que me diz ‘coitadinha’. Eu respondo: coitada de você, porque esta criança vai surpreender o mundo. Outros me lembram que a criança vai ser a vida inteira dependente. Eu digo que, sim, como toda criança. Depois, é levanta-te e anda.
Recomeçar a vida com um bebê pequeno em casa, com choros durante a madrugada, noites mal dormidas e, agora, a incerteza, não é fácil. Mas Marina veio nos ensinar a nos amarmos mais, não só no ambiente familiar. Encontrei amor onde nunca imaginei, amigos de oração, de trabalho. Uma vizinha fez uma promessa, de ficar um mês sem comer doces, se a bebê nascesse bem. Meu Deus, como cresci nesses dias! Sempre há alguém que precisa mais do que a gente. Minha filha é tudo e mais um pouco. Ela encheu nossa casa de amor, e todos nós mudamos por esse amor. Isso é demais.
Fonte: Época