Para estudioso da democratização da comunicação, o liberalismo brasileiro nunca foi democrático, mas sempre excludente
Principal estudioso da democratização da comunicação no Brasil, o professor aposentado da Universidade de Brasília (UNB) Venício Lima enxerga uma conexão profunda entre a atuação das empresas de comunicação e a concretização do processo de impeachment. Em sua opinião, os conglomerados jornalísticos seriam responsáveis pela “corrupção da opinião pública”.
Nesta entrevista, ele aponta a omissão dos governos petistas com relação ao tema como um fator responsável pelo quadro atual e defende a valorização da mídia pública como uma alternativa aos grupos privados.
Venício é autor de diversos livros que abordam as relações entre mídia e política no Brasil, como Cultura do Silêncio e Democracia no Brasil e Mídia: teoria e política.
Confira os principais trechos da entrevista concedia à CartaCapital.
CartaCapital – A atuação dos conglomerados jornalísticos foi determinante para a concretização do processo de impeachment?
Venício Lima – Acredito que nunca tivemos um consenso por parte de um número razoável de analistas políticos sobre a importância dos oligopólios de mídia no processo político como agora. Tem havido uma articulação muito evidente entre as ações da Polícia Federal (PF), do Judiciário – inclusive da Procuradoria Geral da República – e a atuação desses oligopólios.
Não há dúvida de que se pode identificar uma coordenação de calendário na realização seletiva de determinados vazamentos, na antecipação de ações da PF e no cronograma de divulgação de depoimentos sigilosos. Isso feito em sintonia muito clara com setores desses grupos oligopolizados.
Essa evidência fez com que o reconhecimento da participação ativa dos oligopólios no processo tenha aumentado muito. Um analista com o mínimo de seriedade vai necessariamente constatar essa articulação.
Nas análises sobre o mundo contemporâneo, constata-se uma crise generalizada da democracia representativa, o que não é uma particularidade brasileira. Há um reconhecimento crescente, no Brasil e no mundo, do papel fundamental que o controle do acesso ao debate público feito pelos oligopólios de mídia exerce.
CC – Há uma relação direta entre a abordagem dos governos petistas com a pauta domarco regulatório das comunicações e o processo de impeachment?
VL – Durante boa parte do primeiro governo Lula, até a crise do chamado mensalão, em 2005, predominava em setores que tinham o poder de definir politicas no governo o ponto de vista de que não era necessário estabelecer politicas de regulação para a mídia.
A partir de 2005, a situação se altera, porque a evidência do comportamento dos oligopólios na ação penal 470 foi muito clara. Veio a eleição de 2006, e a atuação desses grupos no processo eleitoral também foi muito evidente. Logo depois da eleição, Lula chamou para o governo o jornalista Franklin Martins e deu a ele a tarefa de criar a EBC(Empresa Brasil de Comunicação), o que acabou acontecendo, de forma extremamente conturbada, entre 2007 e 2008.
Houve uma mudança de inflexão ao longo do segundo governo Lula, mas que não se efetivou em medidas concretas, salvo a criação da EBC e a realização da primeira Confecom (Conferência Nacional de Comunicação) em dezembro de 2009. De todo modo, o governo percebeu a importância de se ter, pelo menos, uma mídia pública – o que, aliás, é um mandamento constitucional, por meio do artigo 223, que trata do princípio da complementariedade.
Mesmo que não se fizesse uma regulamentação das normas e princípios relativos à comunicação social, que estão na Constituição de 88 e nunca foram regulamentados, a determinação do presidente de se criar uma empresa pública e a delegação dessa tarefa ao ministro Franklin revelam uma mudança de posição.
Além disso, houve uma série de iniciativas conduzidas pelo ministro Franklin, sobretudo mais ao final do segundo mandato Lula, no sentido de encaminhar uma proposta de regulação da mídia que contemplasse as novas tecnologias, sobretudo a internet, e também as normas e princípios da constituição.
Enquadro nessa perspectiva a realização da 1ª Confecom. Uma comissão criada por um dos três decretos elaborados durante a conferência teria elaborado um pré-projeto de regulação da mídia a ser encaminhado ao Congresso nacional. Consta que esse pré-projeto teria sido entregue por Franklin a Paulo Bernardo, ministro das Comunicações do primeiro governo Dilma.
CC – E qual foi a postura do governo Dilma em relação ao tema?
VL – Não se deu um único passo em relação a nada disso. Logo, há uma relação direta entre essa certa omissão dos governos Lula e Dilma de enfrentamento direto dessa questão.
Primeiro, porque havia uma posição divergente em relação a isso dentro do próprio governo. Segundo, porque as condições políticas para se fazer isso ficaram cada vez mais difíceis, já que o governo ficou enfraquecido a partir da ação penal 470. Embora o ministro Paulo Bernardo tenha anunciado que apresentaria um projeto de regulamentação, isso foi se esvaindo e nunca se concretizou.
No início do segundo mandato, o ministro Berzoini começou a falar nisso e, depois, não falou mais. Logo veio a crise que culminou com a admissibilidade do processo de impeachment no Congresso.
Se a EBC, que é pública, fizesse apenas jornalismo, seria uma alternativa à mídia comercial privada, que é indubitavelmente partidária, e representaria um grande avanço. Só que há uma série de problemas que têm emperrado o desenvolvimento pleno do projeto da comunicação pública. É um conjunto de questões que nunca foi enfrentado de frente pelos governos petistas e, evidentemente, na situação atual, não serão levadas adiante.
CC – As empresas de comunicação costumam atribuir os projetos de regulação das comunicações no Brasil à restrição da liberdade de expressão. Como o sr. enxerga esse argumento?
VL – O primeiro ponto é que não se pode confundir liberdade de expressão com liberdade da imprensa. A liberdade de expressão é anterior no tempo e define, se tomarmos como referência a experiência democrática da Grécia clássica, não só a própria liberdade como a democracia. A democracia clássica grega implicava o autogoverno, que implicava, por sua vez, o direito de fala e de ser ouvido no debate público, que acontecia na ágora.
Ao longo de séculos, isso foi se transformando. Há toda uma história, que passa pelo desenvolvimento de tecnologias que ampliam as possibilidades de comunicação, pela formação de povos e a alfabetização, até que surge a instituição imprensa, que se transforma em atividade empresarial.
Já no início do século XX, essa transformação preocupou pessoas como Max Weber, por exemplo. Em um congresso de sociologia na Alemanha, em 1909, ele já levanta a questão de que a intermediação do debate público via empresas que cuidam da “divulgação” das notícias poderia influir a formação da opinião pública. Até que você tem a situação vivida por nós no mundo contemporâneo, em que você tem grupos empresariais multimídia como intermediários do debate público.
Confundir a liberdade desses grupos com o direito à liberdade de expressão individual, formador das próprias ideias de liberdade e democracia é um absurdo completo. Só que esses grupos, que detêm o oligopólio da agenda pública e do acesso ao debate público, construíram esse argumento. Uma das consequências é o que eu tenho chamado de maior de todas as corrupções, que é a corrupção da opinião pública.
CC – Em sua obra, o sr. afirma que a exclusão de vozes é uma característica histórica do Brasil. Como explicar isso?
VL – Quando eu fiz 70 anos, no ano passado, resolvi fazer um balanço da minha produção e organizei um livro cujo título acabou sendo Cultura do Silêncio e Democracia no Brasil. Acabei me dando conta que o fio condutor entre o que fiz durante os últimos 40 anos é exatamente essa constatação sobre a exclusão de vozes como uma das características da história cultural e política do Brasil.
Essa ideia vem de Paulo Freire, que cunhou a expressão “cultura do silêncio” e que, por sua vez, vale-se de uma constatação feita em um sermão do Padre Antônio Vieira na metade do século XVII, no qual ele diz que “a maior enfermidade do Brasil é ter tido a fala tolhida”.
O Paulo Freire parte dessa constatação para fazer uma proposta de dar voz a quem não tem voz. A pedagogia do oprimido propõe tornar o oprimido capaz de ter consciência do mundo e se colocar criticamente nele para exercer o autogoverno e a liberdade, por meio da expressão de seus interesses e do debate disso. Ele justifica isso dentro da perspectiva de que, do século XVII até agora – e quanto mais eu estudo o tema, mais me convenço disso – o liberalismo brasileiro nunca foi democrático, sempre excludente. Inclusive, escravista, até o final do século XIX.
Esta é uma característica da cultura política brasileira que, no mundo contemporâneo, é bancada pelos oligopólios de mídia, porque eles é que dão acesso ao debate público. Na medida em que eles não dão acesso a uma pluralidade de vozes, mantêm a característica da exclusão e corrompem a opinião pública.
CC – Como o senhor vê a iniciativa do presidente interino Michel Temer de exonerar o presidente eleito da EBC Ricardo Melo?
VL – Trata-se de uma ilegalidade evidente. O que está em jogo vai muito além da presidência da EBC: é todo o projeto de comunicação pública no País que, aliás, é um mandato constitucional, como consta no artigo 223.
Como membro, posso garantir que o Conselho Curador da EBC recorrerá a todos os recursos disponíveis para garantir o cumprimento da lei 11.652/2008. É a função primordial do conselho.
Fonte: Carta Capital