Ex-diretor da TV Brasil diz que acabar com a EBC significa jogar no lixo avanços de um amplo movimento pela democratização da comunicação
O desgoverno ilegítimo de Michel Temer tomou de assalto com sua tropa de choque também a Empresa Brasil de Comunicação (EBC) que desde sua criação tem sido vítima da incompreensão sobre os seus propósitos com a superlativa colaboração da grande mídia, que nunca quis que um projeto de comunicação pública desse certo no Brasil. A TV Brasil, por exemplo, carro-chefe da EBC (que gere 9 rádios mais uma agência de notícias e a TV Brasil Internacional) sempre foi chamada jocosamente de “TV do Lula” ou “TV traço” e mesmo que tenha encetado iniciativas inéditas na TV brasileira, pública ou comercial (como o lançamento de uma novela africana ou um programa apresentado por uma transexual), só recebia atenção da mídia por sua agenda negativa.
A tomada da pequena Bastilha da EBC foi um flagrante desrespeito à lei que a criou e que previa que seu presidente é eleito para um mandato de quatro anos que não coincide com o do presidente da República. Assim, mesmo que ingenuamente, Dilma Roussef nomeou o diretor de jornalismo, Ricardo Melo, ao apagar das luzes de seu governo derrubado pelos golpistas. Melo briga na Justiça por seu mandato, mas não creio que nem ele nem a presidente afastada acreditassem de fato que os golpistas iam respeitar a lei. Não vou me ater aqui ao currículo dos que chegaram agora na EBC nem a lista de maldades que perpetram para desmontar esse projeto de comunicação pública, pois seria dar cartaz a quem não merece.
Vou tentar me ater a um pequeno histórico da empresa à qual servi por duas vezes. Primeiro como gerente de produção, desde o dia em que entrou no ar, em 4 de dezembro de 2007 a 4 de dezembro de 2009. Depois de abril de 2013 a outubro de 2014 como diretor de conteúdo e programação, onde pude (com os cabelos em pé) me espantar com as inúmeras dificuldades burocráticas para se conseguir de fato gerir e colocar conteúdo dentro de veículos públicos. Em pouco tempo conseguiram transformar a EBC num enorme paquiderme lento e pouco azeitado, talvez por um erro de origem ao atrelar a empresa à lei 8.666 (estabelece normas gerais sobre licitações e contratos administrativos pertinentes a obras, serviços, inclusive de publicidade, compras, alienações o que se mostra incompatível com a velocidade que requer uma empresa de comunicação) e subordiná-la a Secretaria de Comunicação Publica da Presidência da República (Secom), e não ao Ministério da Cultura (MinC), como era inicialmente previsto.
Aliás, grupos que gravitavam ao redor do MinC se aglutinaram e idealizaram a EBC em maio de 2007, quando o tema TV pública foi debatido durante o I Fórum Nacional de TVs Públicas, em Brasília. O evento, que envolveu acadêmicos, comunicadores, cineastas, jornalistas, artistas, movimentos sociais, dirigentes de emissoras de rádio e televisão não-comerciais, grupos e entidades dedicados a refletir sobre a comunicação.
O resultado do encontro , repleto de idealismo e boas intenções, resultou num proposta chamada “Carta de Brasília”. Ao receber essa proposta, como os ventos pareciam favoráveis, a Presidência da República comprometeu-se com sua implantação. Foi organizado então um grupo de trabalho, coordenado pela Secom, que estudou modelos e alternativas e elaborou as bases da Medida Provisória 398, propondo a criação de uma nova empresa pública federal. E em outubro de 2007, com a edição da Medida Provisória 398, foi autorizada a criação da Empresa Brasil de Comunicação (EBC), que entrou no ar no dia 4 de dezembro do mesmo ano.
Na prática a EBC nascia da união dos patrimônios e do pessoal da antiga Radiobrás e da Associação de Comunicação Educativa Roquette Pinto (Acerp), que coordenava a TVE Brasil, e daí começaram a surgir problemas que iam da impossibilidade de gestão de muitos contratos e serviços à insubordinação de alguns antigos funcionários das duas empresas que se opunham à sobreposição da EBC. Isso sem contar a inicial fratricida briga interna entre profissionais ligados à Secom e ao MinC que foram ocupar postos de comando na EBC, essa empresa que era tão nova, mas com embates tão velhos. Esse assunto ainda hoje é tabu entre todos os envolvidos, mas a essa altura, quando todos perdemos, seria bom que todos se debruçassem sobre seus erros para não repeti-los em uma remota possibilidade de sobrevivência de comunicação pública com amplitude nacional.
Nesse contexto muitos se arvoram em serem os pais e mães da comunicação publica brasileira e a essa altura mesmo que esses pais e mães nada tenham de legítimos, é melhor que ela tenha muitas pretensas filiações do que nenhuma no momento em que morre na configuração em que foi concebida em maio de 2007. Nesse momento é hora de nivelarmos as diferenças e prantearmos um projeto que iniciou-se cheio de boas intenções há menos de nove anos e morre numa praia deserta sem cumprir seus objetivos.
A EBC foi um processo de construção coletiva, mas muitas vezes perdeu-se em brigas de egos e espaços de poder. Assim todos perdemos. O Brasil perde, os profissionais de comunicação perdem, pois faltaram metas para a consolidação de um projeto de comunicação pública alternativa e efetiva na EBC desde seu começo. O ego da primeira presidente, importante na batalha da lei que resultou na empresa, aliou-se ao seu voluntarismo que ao fim e ao cabo mostrou–se positivo porque ao menos tentou fazer. Mas seus passos não tiveram sequência na gestão seguinte, pois o segundo presidente confundiu empresa de comunicação com instituição bancária, dando força a processos burocráticos, planos de gestão, planejamento estratégico e tudo o mais que fosse área meio sem os devidos fins. Conteúdo não foi prioridade e a gestão titubeante fez com que a a EBC não andasse, não criasse formatos diferentes no jornalismo ou nas suas produções salvo raras exceções embora alguns diretores tenham se empenhado vivamente nisso mas não eram autorizados ou “empoderados” para tal.
Agora nada mais disso importa. Com todas as diferenças as forças que se digladiaram morrem juntas e abraçadas. E dos criativos aos burocratas que queriam o melhor para a EBC, todos ficamos estupefatos com a truculência com que se tomou de assalto esse sonho de comunicação pública que ao demorar pra se consolidar deu espaço para ser golpeado de morte. Urge que essas forças se aglutinem de novo, se organizem e pensem na viabilidade de reconstruir um projeto de comunicação pública efetivo como acontece na França, Inglaterra, Alemanha. Modelos tão citados, mas jamais copiados.
Afrontar a comunicação pública tem lógica diante do ideário golpista. Faz sentido por ser espaço para discussão e expressão de uma sociedade democrática o que não quer um governo autoritário que extinguiu pastas importantes como Direitos Humanos, a Igualdade Racial e a defesa dos direitos das Mulheres. Fora que, não sejamos cínicos, comunicação pública incomoda também os veículos tradicionais, que passaram a publicar artigos e editoriais com equívocos sobre a EBC. Inclusive assinados por canalhas que receberam dinheiro da empresa para entregar “produtos” ilegíveis que não puderam ir ao ar. A comunicação pública no Brasil é sim recente, cheia de problemas, foi mal gerida e mal cuidada tanto pela mídia quanto pelos governos que a criaram. Mas tem potencial imenso de verdadeira integração nacional mostrando o Brasil que ninguém vê , ouve ou assiste. Por isso , no caso da TV Brasil, sempre insisti no slogan, óbvio porém necessário: “TV Brasil – a TV do Brasil”.
Diante dessa realidade difícil observo, com contentamento, que muitos funcionários da EBC acreditavam e acreditam no espírito público da comunicação, mas, infelizmente, outros tantos que vinham da Radiobrás e Acerp deram de ombros diante de problemas e ameaças ao espírito público da comunicação. Alguns são os mesmos que agora defendem abertamente a ilegalidade dos atos de Michel Temer vendo nisso possíveis vantagens para seus planos meramente corporativistas.
Sim, gestões anteriores da EBC tiveram medo da ousadia. Se imaginaram gestoras de balancetes e de livros caixa e não “fabricantes de conteúdo”. Não se discutiram formatos, não se pensou num jornalismo público diferenciado muito embora iniciativas tímidas fossem tentadas . Lá atrás e recentemente quando (tarde demais) resolveram se apossar de vez de pautas, digamos, “progressistas”. Mas diante do que parece o fim da comunicação pública isso parece menor. Imagina se com um governo eleito foi difícil fortalecer a comunicação pública, foi difícil que os presidentes petistas enxergassem a verdadeira dimensão de um projeto desse porte, o que dirá com um governo interino, golpista e pouco afeito à liberdade de expressão.
O fim da EBC e de todas as suas idiossincrasias e paradoxos não é uma vingança contra um projeto de poder. Representa o fim de certa utopia, o fim da valorização de territórios pouco valorizados da comunicação como as nove rádios públicas, inclusive a Rádio Nacional da Amazônia e a Rádio Nacional Alto Solimões, que chegam a recantos que até mesmo rádios comerciais pouço alcançam, levando recados e conteúdos que não interessam as emissoras comerciais. Isso a sociedade brasileira desconhece porque foi lhe passada a imagem que a EBC é um elefante branco inútil e oneroso. Poucos conhecem suas verdadeiras dificuldades e, apesar delas, eu e muitos companheiros dedicamos alguns anos de nossas vidas profissionais para ajudar a erguer esse sonho. Acabar com ele é sim acabar com uma conquista e um patrimônio dos brasileiros, é jogar no lixo avanços de um amplo movimento pela democratização da comunicação. Isso é autoritarismo, isso é golpe. E como golpe deve ser tratado. Diante desse golpe dentro do golpe me envergonho. E lamento profundamente com a sensação de como Proust estar correndo, em vão, em busca do tempo perdido.
* Ricardo Soares é diretor de TV, escritor, roteirista e jornalista. Foi gerente de produção da TV Brasil de dezembro de 2007 a dezembro de 2009 e diretor de conteúdo e programação da EBC de abril de 2013 a outubro de 2014.
Fonte: Brasileiros