Você acreditaria mais numa foto ou nas palavras de um político? O comportamento-padrão nos leva a escolher a primeira opção. Afinal, estamos vendo algo, tendo algum contato com o fato, enquanto que as falas dos políticos são tão fugidias quanto a areia que escorre pelos dedos! Sim, a maioria das pessoas age e raciocina assim, o que não é condenável; é apenas sinal dos tempos. Entretanto, pense ainda que tal foto mostre um vereador acessando conteúdos pornográficos em plena sessão da Câmara e que ele justifique estar com seu computador infectado por vírus.
O quadro não muda, não é verdade? Aliás, só piora, pois o flagrante ajuda a revelar uma faceta ainda desconhecida daquele representante político e sua ousadia em praticar atos distantes de sua função pública na frente de todos! Mas vamos adiante um pouco mais. Imagine ainda que o vereador flagrado seja o único representante de um partido de oposição, em rápido processo de deterioração de imagem, e a tal foto seja espalhada pela mídia a poucos meses das eleições municipais. Tenha em conta ainda que a imagem não foi captada originalmente pelos repórteres fotográficos dos meios que cobrem as sessões da Câmara, mas reproduzida a partir de um site menor, pouco conhecido.
Infelizmente, este episódio não é fictício. Aconteceu no final de abril em Florianópolis, tendo como pivô da discussão o vereador Lino Peres (PT) e uma fotografia publicada inicialmente na página do Facebook do site Fl0r1p4M1lGr4u, e replicada em sites e jornais de todo o Brasil! Sem crédito de autoria, a imagem mostra o vereador de costas para a câmera diante do computador, cuja tela exibe mulheres nuas. A cena se passa no plenário da Câmara Municipal de Florianópolis em meio à sessão ordinária do dia 26 de abril. Divulgada na fanpage no dia seguinte, a fotografia “viralizou”, e foi reproduzida sem qualquer pudor ou rigor jornalístico em meios de São Paulo, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Bahia, Piauí, Mato Grosso do Sul, Alagoas, Rio Grande do Norte, Tocantins, e em portais nacionais como o Yahoo! Notícias e o R7.
Embora a imagem não indicasse como foi feita nem quem a produziu, e ainda que o Fl0r1p4M1lGr4u se considere uma página de humor, a mídia fez a festa, apoiando o noticiário na fotografia apócrifa e sem mais detalhes.
Ainda no dia 27 de abril, a assessoria do vereador se apressou a divulgar nota negando a intenção de acesso àqueles conteúdos e ainda forneceu trecho da gravação em vídeo do momento em que Lino Peres comunicou à mesa diretora que algo estava errado com seu computador. O PT também lançou uma nota pública, repudiando os ataques ao correligionário, condenando o “oportunismo” e a “espetacularização” da divulgação em massa.
Nas redes sociais e nos portais noticiosos, a imagem se espalhou sem controle, e o político foi massacrado nos comentários raivosos, irônicos e moralistas.
Lino Peres registrou boletim de ocorrência e solicitou ao setor de tecnologia da informação da Câmara avaliação do equipamento. Dois laudos distintos foram feitos e os peritos comprovaram que o vereador não fez busca por site impróprio no computador nem navegou naqueles conteúdos durante a fatídica sessão. Comprovada a fraude, o político convocou uma coletiva de imprensa para apresentar o resultado da perícia, mas o estrago já estava feito.
Cadê os limites?
Se isso aconteceu com um político – que geralmente tem mais condições de defesa – por que não aconteceria com um cidadão comum? É bem verdade que um episódio cujo protagonista é um homem público pode ter tornado a narrativa mais atraente para os jornalistas e interessados no escândalo. Adicionem-se a isso algumas doses de moralismo (afinal, era um site pornográfico) e a carga política que se poderia dar ao caso. Diversos sites fizeram questão de trazer nas manchetes que o vereador acusado era do PT, e o BlastingNews, foi além, relacionando o ocorrido com outras polêmicas do partido:
Alguns veículos de informação deram a versão inicial do político – a suspeita de vírus – e ainda ouviram os responsáveis pela página Fl0r1p4M1lGr4u, que atestaram que a fotografia era “real” e havia sido feita no dia da sessão. Mas os administradores da fanpage não disseram quem fez o registro nem como. Fica evidente que os veículos não certificaram a autenticidade da foto – poderia ser uma montagem! – confiaram na declaração do site de humor, e reproduziram o conteúdo, contribuindo para uma impiedosa espiral de pré-julgamento do vereador.
Uma vez na rede, qualquer conteúdo pode ser replicado ao infinito, com muito pouco a fazer para estancar seu progresso. O material pode ser uma importante e bem apurada denúncia jornalística contra os poderosos de plantão, mas também pode ser um conteúdo de origem duvidosa, fora de contexto, que induza ao erro e que fortaleça uma campanha difamatória. Foi o que ocorreu com o vereador neste caso, onde erros e deslizes éticos se acumularam.
É esperado que o jornalismo fiscalize os políticos, que morda os calcanhares dos poderosos, mas este exercício de contrapoder deve estar equilibrado em apuro técnico, em rigor investigativo, e em altos padrões éticos. Se seguir essa trilha, repórteres e editores não estarão fazendo nada além do que deles se espera – jornalismo! Mas se tropeçarem no caminho, seu trabalho estará contaminado e poderá ser questionado, e sua função na democracia terá falhado.
Uma sindicância foi aberta na Câmara de Florianópolis, inquérito policial foi instaurado e o vereador estuda acionar alguns veículos da mídia pedindo direito de resposta e danos morais. Mas este é o caminho jurídico, que pode ser longo e incerto. Interessa também discutir pelo viés da deontologia jornalística onde teriam errado os colegas…
Jogo dos 7 erros
Pelo menos sete deslizes éticos foram cometidos no Caso Lino Peres. Não é meu propósito apontar quem errou mais e onde, mas sim discutir a natureza desses equívocos que poderiam ter sido evitados.
Erro #1: publicaram um material apócrifo e que sem checar sua autenticidade. A foto da fanpage do Fl0r1p4M1lGr4u não tinha assinatura e poderia ser resultado de manipulação de imagem, como a que El País reproduziu em janeiro de 2013 e que se revelou falsa. À época, o jornal espanhol trouxe na capa uma foto do então-presidente venezuelano Hugo Chávez entubado, o que provaria seu estado de saúde debilitado. Os editores da capa não se preocuparam em verificar a veracidade da foto, que havia sido enviada por um repórter free-lancer que prestava serviços ao jornal há algum tempo. Quando perceberam o erro, recolheram milhares de exemplares que já estavam à venda nas ruas. No caso Lino Peres, a mídia replicou uma foto sem saber quem a havia produzido, simplesmente colhendo o material no Facebook.
Erro #2: usar material de terceiros, cujas credenciais podem ser suspeitas. A foto que flagra o vereador diante do computador foi obtida numa fanpage de um site humorístico! Não se trata propriamente de uma fonte de caráter jornalístico, que prime pela exclusividade ou por alguma seriedade do tipo. Em tempos de memes, de piadas virtuais e boatos desenfreados, poderia ser mais uma armadilha. Era. Mas os jornalistas confiaram cegamente e levaram a coisa adiante.
Erro #3: publicar algo que já tenha sido publicado por um grande meio, acreditando na sua credibilidade jornalística. No Caso Lino Peres, alguns portais menores atribuíram a foto e a denúncia contra o vereador ao jornal Extra e ao Yahoo! Notícias. Impossibilitados de checar a notícia, acreditaram em veículos com mais estrutura, mais rigor ou mais proximidade. Um conhecido manipulador da mídia norte-americana, Ryan Holiday, chama a esse processo de“delegação de confiança”, estratégia simples e bastante utilizada e que revela a precariedade do sistema de verificação do jornalismo. Nem todos os elos da cadeia informativa confirmam as informações que publicam, mas confiam em veículos que pretensamente teriam tal preocupação, e nesse jogo de empurra-empurra, muitas informações podem passar pela peneira sem qualquer filtro de apuração, uma fragilidade estarrecedora.
Erro #4: embarcar na polarização partidária e se deixar fazer uso. Com o país dividido politicamente e com a proximidade das eleições municipais, é muito provável que os mais diversos grupos queiram assumir um protagonismo no noticiário. Após o processo de impeachment de Dilma Rousseff e os desgastes dos partidos desde os protestos de junho de 2013, era esperado que o PT – que estava no poder desde 2003 e que se viu também envolvido em denúncias de corrupção – assumisse um papel central na narrativa crítica ao sistema partidário. Não foi à toa que, no caso Lino Peres, alguns veículos tenham enfatizado a legenda do político na chamada principal das matérias. O escândalo não estava apenas no desvio da função pública nem nos condenáveis conteúdos acessados, mas também na condição partidária do político…
Erro #5: não publicar a história completa. Diversos sites deram a foto do vereador, a denúncia de seu mal feito, e parte de sua justificativa, a suspeita de que havia vírus no computador. Muitos órgãos de mídia não informaram que o vereador comunicou à mesa diretora que a máquina apresentava comportamento estranho. Isso por uma razão muito simples: raríssimos são os veículos de comunicação de Florianópolis que cobrem as sessões do parlamento municipal! Com o enxugamento das redações e o fortalecimento dos gabinetes oficiais de imprensa, a mídia local decidiu se eximir de acompanhar o Legislativo de perto. Com isso, não tem mais setoristas na área (nem mesmo na Assembleia Legislativa!), confia nos press releases da assessoria de comunicação e replica conteúdos de terceiros, como no caso Lino Peres. Se houvesse um repórter cobrindo a sessão no plenário da Câmara em tempo real, evitariam embarcar na campanha difamatória…
Erro #6: superdimensionar a denúncia. De forma geral, a mídia funciona muito bem para espalhar escândalos e apontar problemas. Essa é uma função importante dos jornalistas, mas o que se percebe é que os espaços e tempos destinados a acusar e a pré-julgar são sempre mais fartos que os dedicados a pedir desculpas ou desfazer mal entendidos. Não é preciso comparar a quantidade das notícias de denúncia com o publicado contendo os desmentidos. A espetacularização em torno da foto comprometedora surtiu como uma condenação à atitude do político, sobrando muito pouco para o benefício da dúvida. Uma rápida pesquisa em mecanismos de busca na internet mostra que o escândalo ficou muito maior que o esclarecimento do episódio. De posse de dois laudos que atestavam sua inocência, o vereador convocou uma entrevista coletiva, mas meia dúzia de jornalistas foi ouvir a versão final da história (foto). Que imagem do vereador ficará gravada na memória coletiva? Quem não ousará fazer uso político dessa confusão informativa nas eleições de outubro próximo?
Erro #7: não admitir os erros. Infelizmente, é uma tradição do jornalismo brasileiro não reconhecer erros, retificar com clareza e ênfase, ou se retratar. Na pressa e na ânsia por informar, jornalistas atropelam reputações alheias, promovendo um grande carnaval de escândalos e denúncias, muitas vezes vazias. O Caso Lino Peres não foge à regra. O colunista do Diário Catarinense, Rafael Martini, publicou em 6 de maio a nota “Hora de pedir desculpas ao vereador Lino Peres”. A despeito do que parece, o texto com menos de dez linhas não apresenta escusas, mas terceiriza essa obrigação: “Agora, resta saber quem fotografou e distribuiu a imagem e, o mais importante, se todos aqueles que o criticaram terão a hombridez de desculpar-se”. Pois é… Embora tenha sido cuidadoso em sua nota de 28 de abril no mesmo espaço, Martini reproduziu a polêmica foto, ajudando a espalhar a suspeita contra o político…
O caso Lino Peres é um exemplo de como pretensos escândalos paroquiais podem se converter em denúncias globais na internet, catalisado pelo jornalismo preguiçoso, apressado e mal intencionado, que tem privilegiado o boato, a opinião no lugar do esforço de apuração e reportagem. Espremidas entre a ânsia de fornecer todo tipo de informação ao público e suas limitações operacionais, as redações transferem às redes sociais, aos amadores e a terceiros suas funções principais: apurar com rigor e noticiar com responsabilidade. Como as redes, os amadores e os terceiros não têm credibilidade a perder, não se ocupam dessas tarefas. O jornalismo – que afrouxa seus padrões éticos e economiza em qualidade técnica – atira contra si mesmo quando renuncia a seu papel. Isso não é bom para ninguém.
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Rogério Christofoletti é professor da UFSC e pesquisador do objETHOS