Fórum Mundial de Mídia Livre, realizado no Canadá, debateu a importância de infraestruturas independentes para o exercício da liberdade de expressão.
Montreal, no Canadá, é chamada de Tiotia:keno idioma kanien’kehá:ka. Historicamente, a cidade era um lugar de encontro para os diversos povos originários do país, que sofrem até hoje os efeitos da colonização europeia e, posteriormente, norte-americana de seus territórios. Pois foi em Tiotia:ke que centenas de ativistas que defendem a liberdade de expressão e mudanças no sistema global de comunicações se reuniram este mês, na quinta edição do Fórum Mundial de Mídia Livre (FMML).
Consciente do papel da mídia independente no enfrentamento ao conservadorismo e a discursos reacionários que crescem em todo o planeta, assim como da importância do acesso aos meios para a disputa de valores em qualquer sociedade, o fórum foi um importante espaço de troca de experiências em torno, justamente, do que pode ser chamado de “descolonização midiática”.
A expressão pode parecer distante da realidade brasileira, mas esta é uma ideia que ganha corpo cada vez mais em países e territórios que ainda são palco de disputas por soberania. Mais do que debater o papel dos meios de comunicação na resistência frente ao colonialismo ainda em curso nas mais diferentes regiões do mundo – a Palestina e os territórios curdos são um exemplo –, a luta pela descolonização midiática tem revelado experiências interessantíssimas de povos que têm se apropriado das novas tecnologias para construir suas próprias redes de comunicação, independentemente de governos e do mercado.
O princípio é antigo. Como relembrou Ramnat Bhat durante o FMML, o controle dos cabos de comunicação pelos ingleses no século XVIII foi central para a dominação da Índia. E o Telegraph Act, lei que regula o setor, datada de 1885, vigora até hoje no país. “Desde a independência da Índia, as leis que protegiam a infraestrutura de telecomunicação permaneceram intocadas. E isso tem a ver com liberdade de expressão”, afirmou.
Marcadas pela exclusão digital, comunidades indígenas de Oaxaca (México) perceberam que somente uma infraestrutura autônoma permitiria o acesso da população mais excluída à informação e ao exercício de sua liberdade de expressão. No México, cerca de 50 mil comunidades no país carecem do serviço telefônico em função da falta de interesse econômico por parte das operadoras. O processo se baseou no modelo de uma rede de rádios funcionando apenas com software livre, que chegou a 17 comunidades.
Depois, com base no argumento da comunicação como bem comum, conseguiram uma autorização provisória para operar uma rede de telefonia móvel na região. Recentemente, obtiveram a licença de operação para 15 anos. A infraestrutura foi construída a partir de doações da própria população.
“Parece utopia e algo muito distante, mas isso está sendo construído em várias comunidades”, contou Loreto Bravo, da Rádio Palavra, uma das emissoras que deu início ao processo. “As pessoas têm controle do território e sabem que estão exercendo seu direito. Um dos grandes desafios é construir as pontes entre as comunidades indígenas e as hackers, que dominam a tecnologia. Outra é decidir a política de gestão compartilhada da rede, mudar a mentalidade das pessoas, para que entendam que não se trata de uma relação de consumo e sim de um direito”, acrescentou.
Parte do dinheiro que está sendo arrecadado com os planos de celular – que custam infinitamente menos do que os oferecidos pelas operadoras comerciais –, por exemplo, é destinado à sustentação da rede de rádios comunitárias e contribuirá com um fundo para criar uma empresa comunitária de comunicação, que trabalhe com outras linguagens, onde o objetivo não seja o lucro e sim criar condições para o exercício do direito à comunicação pelos povos indígenas. Apesar da conquista da rede de telefonia móvel, os desafios no campo da radiodifusão persistem. Oaxaca conta, por exemplo, com 60 rádios comunitárias, mas apenas quatro possuem licença do Estado mexicano para funcionar.
“Precisamos olhar o espectro a partir de uma perspectiva social. O acesso a ele hoje custa tanto porque seu uso social produz valor. É uma extensão da nossa possibilidade de comunicar. E a razão pela qual não temos acesso ao espectro é porque ele é regulado como pedaços de terra vendidos às companhias. Se quisermos ter acesso à comunicação, temos que pagar por isso”, explica Peter Bloom, do grupo Rhizomatica, que viabilizou a rede móvel de Oaxaca. “Mas a legislação hoje nos permite reivindicar uma parte do espectro, e assim podemos usá-lo de muitas formas. Sempre falamos em ter acesso ao ar e usamos isso para TVs e rádios comunitárias, mas podemos fazer muito outros usos”, reforçou Bloom em sua palestra no FMML.
Conexões globais
Em Montreal, os coordenadores do projeto de Oaxaca puderam compartilhar sua experiência com outra bastante parecida, que está sendo desenvolvida no estado de Manitoba, no oeste do Canadá. Em Winnipeg, capital da província, o consórcio First Mile Connectivity também está construindo uma rede para os povos originários de Manitoba. Ali, somente 21 das 63 comunidades tradicionais – muitas acessíveis somente por avião – tem acesso à internet, a um custo altíssimo para a população local.
“Nos poucos lugares conectados, o acesso é via satélite e muito instável. Algumas pessoas pagam 300 dólares por mês por uma conexão. E há quem tenha que acordar de madrugada, quando a rede está menos congestionada, para baixar arquivos simples como um PDF”, contou Jonathan Fleury, que participa do projeto em Manitoba.
Para Peter Bloom, a luta por espaço na comunicação deve ser articulada internacionalmente: “temos que ampliar nossos horizontes. Não queremos só um pedacinho do espectro, mas uma mudança sobre o que deve ser feito com ele, pensando na comunicação como um direito social. Conforme a tecnologia avança, temos que poder usar mais”.
Na Índia, assim como no Brasil, com a comunicação pública, o espectro vem sendo cada vez mais monetizado e frequências de TV estão sendo vendidas para conexões 4G. “O que antes era oferecido como um serviço gratuito para a população agora será destinado um serviço pago. Fazer o enfrentamento da política em nível individual não será suficiente. Temos que ir mais fundo em nossa articulação global”, acredita o indiano Ramnat Bhat.
O Fórum Mundial de Mídia Livre é um espaço exatamente pra isso. Criado no âmbito do Fórum Social Mundial, em 2009, em Belém, o FMML tem reunido um número crescente de jornalistas, organizações da sociedade civil, hackers, desenvolvedores de software livre, pesquisadores e comunicadores populares e independentes que atuam para transformar essa realidade e garantir o exercício universal do direito à comunicação.
O Intervozes é uma das organizações que integra o comitê internacional de organização do FMML, que já aprovou, para o próximo período, uma série de atividades e encontros. Um deles deve acontecer exatamente em Oaxaca, onde o tema da descolonização midiática será uma vez mais centro do debate.
*Bia Barbosa é jornalista e representa o Intervozes no processo do Fórum Mundial de Mídia Livre.
Fonte: Carta Capital