Distinção entre público e estatal nunca foi muito clara no Brasil. E essa confusão está presente na própria lei de criação da EBC
Este ano, a TV Brasil foi palco de um embate entre o presidente interino, Michel Temer, e a presidente afastada,
Dilma Rousseff. Temer acusava Dilma de ter transformado em arma de propaganda a TV Brasil, que, por ser uma emissora pública, não pode ter caráter político-partidário. A tensão começou após Temer tentar exonerar Ricardo Melo, nomeado por Dilma presidente da Empresa Brasil Comunicação (EBC), empresa de comunicação pública da qual a TV Brasil é o carro-chefe.
A discussão acabou jogando luz sobre o paradoxo que rege a natureza jurídica da EBC. Criada em 2008, a EBC tem como missão se tornar uma espécie de BBC brasileira: uma empresa de comunicação pública, voltada à formação do pensamento crítico do telespectador, sem influência comercial ou política.
O problema é que a distinção entre público e estatal nunca foi muito clara no Brasil, o que torna difícil distinguir uma emissora pública de uma emissora estatal. E essa confusão está presente na própria lei de criação da EBC, que deu mais poderes ao conselho administrador da emissora, composto por membros nomeados pelo Palácio do Planalto, do que ao conselho curador, que é formado por representantes da sociedade civil e responsável por dar o caráter público da empresa. Para piorar, a EBC é vinculada à Secretaria de Comunicação da Presidência da República (Secom), órgão responsável por coordenar a publicidade do governo.
Tamanho paradoxo deixa claro que a EBC precisa ser reformulada. Para entender como isso seria possível, o Opinião e Notícia conversou com Chico Sant’Anna, jornalista e doutor em Ciência da Informação e Comunicação, e Eugênio Bucci, jornalista e professor de Comunicação da Universidade de São Paulo (USP).
Fortalecer a autonomia para blindar da ingerência
Para Sant’Anna, uma das medidas cruciais é garantir que a escolha da linha editorial e dos representantes do conselho curador da emissora ocorra de forma transparente e com mais participação da sociedade. Ele considera que os atuais critérios usados para definir ambas as coisas são nebulosos. “Embora se tenha uma convocação à sociedade para que ela apresente temas e um mundo da cultura e da comunicação possa apresentar seus nomes [como candidatos a compor o conselho curador], para mim, os critérios não são transparentes”.
Segundo ele, uma forma de mudar isso é adotar um modelo como o utilizado na TV Câmara francesa. “Era lançado um edital público a cada dois anos, onde pessoas se candidatavam à direção do canal, apresentando propostas de linha editorial e de orçamento. Essas propostas eram sabatinadas por uma comissão especial da Câmara francesa numa sessão transmitida ao vivo para todo o país. O projeto que viesse a ser aprovado teria autonomia pelos próximos dois anos”, diz Sant’Anna, ressaltando que a autonomia era garantida mesmo em caso de troca de governo.
Para Sant’Anna, além da transparência, a EBC também precisa de mecanismos que garantam sua autonomia e blindem a emissora da ingerência política, como ocorreu com outra emissora pública, a TV Cultura, de São Paulo. “Vários governos tentaram mexer na autonomia da TV Cultura e não conseguiram. Na gestão de Geraldo Alckmin, ele, não conseguindo mexer na gestão que lá estava, decidiu fechar a torneira do dinheiro. Mudou a lei que assegurava o repasse do percentual do ICMS para a TV Cultura. Então, é necessário ter mecanismos legais. Esse caso agora da EBC mostra a necessidade de se ter isso em legislação, porque não basta ficar só na boa vontade deste ou daquele governo”.
Mudar a natureza jurídica para definir o caráter público
Bucci, por sua vez, diz ser necessário mudar a natureza jurídica da EBC. Para ele, a empresa deveria deixar de ser uma empresa pública para se tornar uma fundação, como a TV Cultura. Isso porque, segundo ele, afirmar que a EBC é uma empresa pública, e não estatal, é apenas um “jogo de palavras”. “Toda empresa pública que pertença ao governo federal é uma estatal, uma empresa do Estado. E toda estatal é uma empresa pública. Embora a EBC tenha a vocação de ser menos estatal e mais próxima da sociedade, ela é uma estatal. A única diferença é que ela tem esse conselho curador, que é como uma consciência da sociedade dentro da organização, mas sua eficácia, seu poder de gerar consequências são muito reduzidos”.
Além de mudar a natureza jurídica, Bucci diz que a EBC precisa deixar de ser vinculada à Secom e passar a ser vinculada ao Ministério da Cultura. “Pode-se dizer ‘Ah, é um ministério como todos os outros’. Não é verdade. As atribuições do Ministério da Cultura não incluem fazer publicidade do governo. A gestão da cultura é incompatível com a gestão da imagem oficial do presidente da República. Somente países muito atrasados na evolução democrática é que admitem esse tipo de confusão. Se ela [a EBC] não fizer essas mudanças, acabará sendo fechada por esse governo ou pelo futuro e transformada numa agência de comunicação governamental pura e simples. E todo um trabalho feito ao longo dos últimos 15 anos vai por água abaixo”.
Reformulação sim, extinção não
Embora sejam necessárias mudanças, Sant’Anna e Bucci são contra a proposta estudada por Temer de fechar a TV Brasil e eliminar o conselho curador da EBC. Para eles, a emissora é um importante instrumento para a cultura e para assegurar o direito do cidadão de informar e ser informado previsto na Constituição.
“A notícia que é distante, lá nos rincões, que é preciso mandar avião, navio, ou mesmo notícias das periferias das grandes cidades, na maioria das vezes, é ignorada, salvo se for uma grande catástrofe. Porque a televisão comercial se guia pelo custo daquela notícia. Vale a pena eu gastar tantos mil reais para cobrir alguma coisa na periferia de uma grande cidade? Ou mandar uma equipe para cobrir alguma coisa no sertão nordestino ou no pantanal mato-grossense? O olhar do canal público já não é um olhar comercial, é um olhar de cidadania. Enquanto você constrói consumidores no canal comercial, você constrói cidadãos no canal público”, diz Sant’Anna, afirmando, porém, que a EBC deve investir mais em conteúdo regional. “A regionalização dela é muito fraca. Ela assumiu um padrão editorial das grandes redes nacionais. Aqui em Brasília ela assumiu o mesmo pecado dos outros canais comerciais que olham Brasília como sendo só a Esplanada dos Ministérios”.
Já Bucci afirma que as emissoras públicas fazem parte da democracia, como forma de dar voz a diferentes culturas que o mercado não conseguiria sustentar. “Até os EUA, que todos imaginam o paraíso das emissoras privadas, têm sistemas sólidos e tradicionais de emissoras públicas, como a PBS. A França tem a France Télévisions; o Reino Unido tem a BBC; a Alemanha a Deutsche Welle. As democracias que têm mais tradição têm sistemas públicos não comerciais de rádio e televisão. Porque a forma comercial de veiculação de notícias e bens culturais não preenche todos os campos da vida social de uma democracia. É pela mesma razão que é preciso existir fundação para sustentar uma orquestra sinfônica. Se fosse depender da venda de discos e de shows, não existiria nenhuma orquestra sinfônica no mundo. O mercado não sustenta todas as formas de expressão cultural”.
Fonte: Opinião e notícia