Cresce o movimento pela inclusão de outros grupos minorizados em campanhas publicitárias e na mídia
Uma mulher entra em uma sala e, à sua espera, de costas, está um especialista em retratos falados. Sem verem um ao outro, a mulher começa a descrever seu próprio rosto enquanto ele desenha. Ela sai e, em seguida, um desconhecido descreve essa mesma mulher ao retratista.
Os dois desenhos prontos, postos lado a lado, mostram que as mulheres se viam de forma mais depreciada do que os outros a enxergavam. O segundo retrato mostrava as mulheres mais alegres e bonitas — mais parecidas com elas mesmas. Todo o processo foi registrado em vídeo como parte da ação “Retratos da Real Beleza” de Dove, lançada em 2013.
Para fundamentar essa diretriz, a Dove já havia realizado pesquisas globais: apenas 2% das mulheres se consideravam bonitas em 2004 e 4% em 2011. Quanto aos padrões da mídia, em 2015, 76% das mulheres acreditam que a mídia e a publicidade definem um padrão impossível de beleza.
“As mulheres têm repensado a maneira como se veem, como veem as outras mulheres, e estão revendo seus parâmetros sobre ‘o que é ser bela’”, diz Viviane Ramos, gerente de marketing de Dove. “Muitas marcas começaram a enxergar essa mudança e a fazer parte desse processo de ressignificação da mulher”.
Nos últimos anos, tem crescido o movimento pela inclusão não só das mulheres, mas também de outros grupos minorizados em campanhas publicitárias e na mídia. A luta de parte da sociedade é para que as empresas enxerguem a necessidade de readequar a mensagem que passam e questionar o tipo de discurso que elas reforçam, para que a mídia seja mais democrática e menos violenta e opressora.
Algumas marcas já deixaram de lado as modelos magérrimas, brancas de cabelo liso, e tentam diversificar a representação da mulher, mas ainda há outras propagandas, como as de cerveja, que objetificam e sexualizam o corpo da mulher, ou os comerciais que tentam vender produtos de limpeza associados à imagem feminina. Outras mensagens publicitárias, ainda, colocam como brincadeira assuntos que trazem muito sofrimento para as mulheres, como o assédio ou o vazamento de fotos íntimas.
Pressionadas pela reação rápida dos consumidores nas redes sociais e pelos questionamentos às mensagens publicitárias tradicionais, muitas empresas já buscam arejar o discurso. A Avon é uma delas: suas propagandas são marcadas pela presença de mulheres negras, da comunidade LGBT, magras e gordas, de todas as alturas e tipos de cabelo.
E, pela primeira vez, uma marca brasileira escolheu uma garota-propaganda transgênero para representar seus produtos. Maria Clara Araújo e a Lola Cosmetics fizeram uma parceria em 2015 para a coleção Oh!Maria. “Tê-la como a garota-propaganda da nossa marca dá chance para que outras meninas trans percebam que têm o direito de ser o que bem entenderem”, afirma a assessoria de imprensa da Lola.
“Eu sou uma mulher negra e estou longe de ser magra. A mídia brasileira só escolhe modelos muito específicos para representar a mulher trans, que é no meio satirizador, patologizador, e de humilhação e criminalidade”, afirmou em entrevista à CartaCapitalno ano passado. “Essa é uma oportunidade de expandir a representação das mulheres”.
Mudança cultural
Mas a parcela da sociedade que pede essas mudanças não quer que elas ocorram só na área de cosméticos e em campanhas publicitárias. Pedem, além disso, uma mudança estrutural, de comportamento e de cultura empresarial.
Em setembro deste ano, a Ambev, Braskem, e o escritório de advocacia Trench, Rossi e Watanabe assinaram o documento Fórum de Empresas e Direitos LGBT em que se comprometem com direitos LGBT.
As multinacionais Google, Facebook, 3M, Dow, GE e Avon também são signatárias do acordo que procura estimular o respeito e o debate aberto sobre o assunto, para que funcionários possam ser autênticos na vida corporativa.
Pensando nessa necessidade de ir além da mensagem, a ONG ThinkOlga, criada por Juliana de Faria e que tem o objetivo de empoderar as mulheres por meio da informação, lançou o ThinkEva.
Ela afirma que a ONG percebeu a necessidade de não só fazer a denúncia, mas de cuidar do passo anterior: “nosso trabalho é colocar nas pessoas os óculos que permitem enxergar o machismo, racismo e todo tipo de preconceito, para que esses anúncios não saiam nocivos, já que temos toda uma vida impactada negativamente pela publicidade maldosa e que se baseia em piadas dos anos 80”.
Mas quando a empresa só está interessada em fazer uma campanha superficial, “com uma palavra-chave, uma mulher na foto e um fundo cor-de-rosa”, Juliana não hesita em negar a parceria. “Nosso trabalho envolve educar a equipe para que de fato eles entendam essas questões com palestras, workshops e cursos. Do contrário, só estamos compactuando com uma superficialidade”.
Juliana já trabalhou com marcas que querem abrir caminhos para que as mulheres possam fazer o discurso por contra própria, mas a idealizadora do ThinkOlga reconhece que o mercado muitas vezes ignora os grupos minorizados.
“É um problema que essas marcas gerem lucro em cima disso, o que resulta numa desigualdade social. Por outro lado, é interessante que esses grupos tenham acesso a produtos e serviços, porque precisamos englobar, por exemplo, mulheres gordas, negras ou com deficiência”.
A Pfizer foi uma das empresas que recorreu à ThinkEva para um trabalho interno, e não de propagandas. Desde 2009, afirma Cristiane Santos, a Pfizer tem um projeto de trabalhar a diversidade dentro da empresa e promover iniciativas para que tenham mulheres em altos cargos da corporação.
Foi em uma dessas conversas que trouxeram Luislinda Valois, a primeira desembargadora negra do Brasil, além de pesquisadoras, e executivas de grandes empresas. “Nesse ano, convidamos a ThinkEva para aprofundar esse debate. Elas vieram conversar sobre violência contra a mulher e o assédio na internet ou fora dela”, diz.
Cristiane acredita que a empresa tem responsabilidade de promover essa discussão e não tolerar comportamentos inadequados. “A empresa ganha com isso e, se quisermos uma sociedade mais justa, precisamos começar dentro de casa”. Em 2014, a Pfizer também levou especialistas para debater a eleição presidencial com seus funcionários.
Maria Elisa Gualandi Verri, da área de Investimento Social Corporativo de TozziniFreire Advogados, afirma que a empresa, que contratou a ThinkEva para uma palestra no começo deste ano, sempre se preocupou com igualdade de gênero.
Ela mesma se coloca como prova disso. Há 17 anos, quando chegou, disse na entrevista de emprego que estava grávida. “Mesmo assim eles me aceitaram. Eu trabalhei até ter o bebê e depois tirei licença. Quando voltei, quase em seguida, fui feita sócia. Aconteceu comigo, mas é raro”.
Ela conta que o mercado de advocacia é bastante machista, mas que a TozziniFreire se destaca neste meio por contar com uma presença feminina significativa entre advogadas, sócias e membros do comitê executivo e de gestão: “40% das sócias são mulheres. É uma mensagem importante para passar para a sociedade e para as advogadas mais jovens verem que podem crescer na carreira, porque têm em quem se espelhar”, diz Maria Elisa.
O Bradesco também firmou uma parceria com a ThinkEva e, juntos, produziram três ações: entrevistaram mulheres com projetos distintos para evidenciar que a mulher tem ocupado mais espaço na sociedade, entrevistas com mulheres que participaram nos Jogos Rio 2016 e a campanha de revezamento da tocha olímpica.
Nayara Ruiz, Coordenadora de RP Digital no Bradesco, conta que a população podia indicar alguém que considerasse merecedor de conduzir a tocha. “O intuito era passar a mensagem de que qualquer pessoa poderia conduzi-la e tínhamos a ambição de evidenciar histórias protagonizadas por mulheres”, explica. Uma das condutoras da tocha foi a própria Juliana de Faria, que passou a chama para Maria da Penha, em Fortaleza.
“Existem assuntos que precisam ser abordados, mas a maneira como isso é feito é muito importante”, ressalta Nayara. “Isso significa que a mensagem tem que fazer sentido para todo mundo: para a marca, para o criador de conteúdo e também para a audiência. Se no final não fizer sentido para um desses três, significa que a mensagem não está sendo passada como deveria”.
E quando as empresas erram o caminho e a mensagem não faz sentido, a reação é imediata. Por meio das redes sociais, ninguém hesita em apontar os erros e construir críticas à ação.
“Há quem faça críticas altamente construtivas, algo muito didático para as empresas que souberem ouvir. E são pessoas desabafando sobre uma violência que sofreram durante muito tempo e não tinham voz para poder reclamar. Essa reação rápida está fazendo as marcas olharem para si e entenderem que o mundo mudou. Não estou falando do futuro, é agora. Quem não se adaptar, não vai conseguir continuar fortalecido”, diz Juliana de Faria.
Fonte: Carta Capital