As fronteiras da transparência

Apesar do consenso construído em torno da transparência como atitude indispensável para entes públicos e corporações privadas, a materialização deste conceito é complexa, onerosa, e por vezes dramática.

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Armando Medeiros de Faria*

Uma garota de 12 anos recebe, por engano, vaselina (em vez de soro) nas veias, e morre num hospital paulista. Tratada como “a suspeita de matar a menina”, a enfermeira que cometeu o erro fatal concede entrevista ao “Fantástico” (13/12/2010) (1) e seu depoimento é uma demonstração rara de “humanização” e exposição em meio à uma atmosfera carregada de repúdio, consternação e revolta. O erro que custou a vida da menina foi assumido numa entrevista na qual a enfermeira (não de rosto inteiro, mas com closes dos olhos, boca, nariz, mãos) confessa o equívoco trágico: “esse instante de que eu olhei para garrafa, mas não vi, esse momento que meu cérebro desligou, esse instante eu não tenho como fugir, como escapar …”

Embora a entrevista tenha sido fruto de negociações (como todas, em geral), a enfermeira dá força à ideia de transparência como uma determinação de se expor, seja quais forem as circunstâncias. Irrefutável como valor, as discussões sobre transparência podem conduzir, muitas vezes, a mal entendidos e simplificações exageradas que obliteram a funcionalidade da transparência ou a fazem pairar, como uma espécie de conceito fundamentalista-sagrado, acima das nuances e conflitos do cotidiano.

Por mais que a positividade da transparência seja inquestionável, seus limites e fronteiras precisam ser examinados. Dois elementos cruciais se apresentam. O primeiro aspecto refere-se aos conceitos de “hiperinformação”, “hipervisibilidade”, espetacularização”, em suma, a alimentação do espelho mediático por uma quantidade de cenas, dados e narrativas que “tanto expõem como apagam” (RUBIM, Albino, 2004) (2). O que está em pauta é a hipótese de que a quantidade de informações circulantes apesar de ressaltar a transparência pode, justamente, dificultá-la, como aborda Gianni Vattimo.(3)

Ao mesmo tempo em que os meios de comunicação atuam na construção da “autotransparência” da sociedade, o consumo da informação se dá de forma tão intensa que a digestão só pode ocorrer superficialmente, rápida e com o mínimo de absorção. Em outras palavras, trata-se do fenômeno de entropia, ligado à multiplicação excessiva de informações sobre a realidade que acaba por dilapidar o próprio princípio de “realidade”. Em vez de uma sociedade iluminada e transparente, o resultado é uma sociedade caótica, complexa, quase incompreensível.

O segundo elemento a ser examinado são as fronteiras da transparência com a confidencialidade e com os direitos relacionados à intimidade da pessoa humana. Algumas profissões e áreas têm na preservação de informações a base ética que sustenta a relação com pacientes, clientes e parceiros. Vale lembrar que a Declaração Universal dos Direitos Humanos, assinada pelos países membros da Organização das Nações Unidas (ONU) em 1948, estabelece o direito à não interferência na vida privada pessoal ou familiar, princípios que também foram incorporados na Constituição do Brasil de 1988.

Mesmo os documentos de natureza pública, em alguma medida, são regulados. Na Suécia, por exemplo, que tem uma legislação avançada, as informações públicas são abertas. Mas, sob condições específicas e exceções bem definidas, alguns documentos podem ser mantidos em segredo. Em conferência, o embaixador sueco Torvald Åkesson (4) enumera como situações específicas, passíveis de sigilo, aquelas que envolvam: a segurança do país ou a sua relação com outro país ou organização internacional; a política fiscal, monetária ou cambial, a inspeção, o controle e outras operações de fiscalização realizadas pelas autoridades públicas; a prevenção ou o processamento de crimes; interesses econômicos do público em geral; a proteção da situação pessoal e econômica de particulares; e a proteção de espécies animais ou vegetais.

Transparência, portanto, deve ser entendida a partir das interfaces com o grau de democracia de um País, com o avanço dos direitos individuais, combinados também com as necessidades de proteção e de bem-estar de uma sociedade. Cabe, agora, nos limites deste artigo, um olhar mais específico sobre a transparência nas organizações.

No âmbito das corporações, cresce a normatização e uniformização dos parâmetros da transparência. A Governança Corporativa nas empresas prescreve, hoje, cada vez mais, a aplicação de procedimentos nos quais a transparência seja o fundamento das relações com acionistas, clientes, funcionários e órgãos reguladores. Isto não impede problemas como a sonegação ou falsificação de dados para acionistas em 2001 que levaram a Enron à concordata – além de chamuscarem a reputação da Arthur Andersen, responsável pela auditoria da situação contábil-financeira da empresa.

Ao final das investigações, descobriu-se que a Enron havia manipulado seus balanços financeiros, com a ajuda de empresas e bancos. A empresa não somente escondeu dívidas de US$ 25 bilhões, como apresentou lucros inflados artificialmente. Neste episódio também ficou evidenciado – uma vez mais – que das palavras aos atos, a transparência trilha um longo percurso. Todos os mecanismos de controle e de formalização das referências da transparência nas empresas são progressos mais que desejáveis, mas obviamente não garantem imunidade.

As crises econômicas mundiais que hoje protagonizam o noticiário econômico demonstram também a relação direta existente entre governança e controle de riscos, por exemplo. Para se preservar em ambientes de tanta instabilidade, as empresas estão sob a égide dos limites responsáveis de risco, em suas operações. Isso tem a ver com a prática da transparência e com o reforço permanente dos parâmetros da governança.

A atitude de transparência envolve lidar com tais tensões. A todo momento, são colocados à prova alguns princípios como o direito à privacidade, o sigilo comercial e bancário, por exemplos. Sob o argumento legítimo da ética da transparência e do trabalho em prol do interesse público, a mídia e seus agentes contribuem para abalar alicerces historicamente construídos de governança e de normatização da privacidade de informações. De um lado, absoluta transparência, clama a mídia. De outro, as exigências de obediência à regulamentação e às determinações legais de confidencialidade.

Sob a égide da “transparência”, Estado e corporações privadas se colocam à prova do escrutínio mais severo da mídia, da Justiça, de lideranças sociais e dos organismos de defesa dos cidadãos. Tal enfrentamento requer a construção de discursos sustentados em plataformas realistas uma vez que a comunicação baseada na transparência não é isenta de conflitos e da interlocução com muitos interesses. Daí que o discurso da transparência somente é edificado com a argamassa da confiança, elemento estruturante do relacionamento das organizações públicas e privadas com seus diversos públicos.

O que foi discutido de forma preliminar neste artigo teve como princípio o endosso à transparência como exigência elementar nas atividades públicas e privadas. Transparência deve ser experimentada como “regra”, e não “exceção”. Mas não se deve desconsiderar a tensão, em algumas situações, nas quais a confidencialidade precisa ser preservada, sem prejuízo algum para os imperativos da prestação de contas e do direito de saber do cidadão.

O debate não termina aqui, principalmente nestes tempos de Wikileads e destemidos como Julian Assange. Como escreveu Luís Bassets (5) referindo-se aos embates entre os defensores da confidencialidade regulamentada e os da transparência absoluta: “intelectuais e jornalistas sabem que a vida é feita de negociações e acordos: é preciso optar entre valores e gradações do mal, ao invés de angélicas ambições em defesa do bem absoluto. E mais concretamente: alguns entendem que esses dilemas referem-se apenas às autoridades públicas, outros (…) acreditam que a falta de transparência prejudica mais os consumidores das empresas privadas”.

Seja como for, vale sempre suspeitar de quem defende a transparência, mas não a aplica para si.


(*) Armando Medeiros de Faria é vice-presidente da ABCPública – Associação Brasileira de Comunicação Pública, com mestrado em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo (USP). Foi diretor de comunicação e marketing do Banco do Brasil e coordenador na Secretaria de Comunicação da Presidência da República. Atualmente é consultor da LS Comunicação. armandomf@uol.com.br

Fonte: Coluna Conexão Pública no jornal Brasília de Fato


Referências

(1) Reportagem no Fantástico: link 1 ou link2
(2) RUBIM, Antonio Albino Canelas (org). Comunicação e Política: conceitos e abordagens. Editora Unesp-Editora UFBA, 2004.
(3) VATTIMO, Gianni, A sociedade transparente, Editora Relógio DÁgua, Lisboa, 1992.
(4) Embaixador Sueco Torvald Åkesson, na Conferencia de MISA/Instituto de Comunicação Social da África Austral – MISA-Moçambique, sobre Direito à Informação, 18 de Maio de 2011.
(5) “Um fantasma na cúpula de Davos”, 29/01/11.