Este espaço será ocupado por resenhas de livros, discos, filmes e outras manifestações culturais. O novo livro de Umberto Eco, “Número Zero” (Editora Record, 207 páginas) inaugura esta seção. O romance aborda uma imaginária publicação jornalística que é uma máquina de difamação, manipulação e chantagem de adversários. De forma engenhosa, o livro mistura ficção e realidade, convidando o leitor a desconfiar de tudo. Muito além do sensacionalismo, o engano é o espírito do nosso tempo.
A trama é curiosa. Uma equipe editorial sem histórico profissional recomendável é reunida sob o patrocínio do Comendador Virmecat para elaborar um novo jornal, batizado de “Amanhã”. A publicação terá sucessivas edições experimentais (números zero) destinadas puramente à chantagem.
O conteúdo da apuração obedece essencialmente à lógica de difundir informações capazes de alarmar setores econômicos e políticos. A decisão de publicar, ou não caberia, ao Comendador. Aqueles “que ele não se importa de alarmar”, explica um personagem, seriam os alvos preferenciais das matérias.
A verossimilhança das reportagens com a realidade, de teor constrangedor ou no mínimo embaraçoso junto a pessoas influentes, dará o impulso para a negociação. A contrapartida de favorecimentos, ou pagamentos em dinheiro, será simplesmente o jornal não circular.
“Número Zero” remete, em vários momentos, para eloquentes exemplos de mau jornalismo e consagração do sensacionalismo. Situações que estão presentes, por exemplo, nas narrativas de Samuel Wainer (“Minha razão de viver – memórias de um repórter”, Editora Record, 1987) e na biografia de Assis Chateaubriand, criador do império Diários Associados (Chatô, o Rei do Brasil, por Fernando Morais, Companhia das Letras, 1994).
Ao escrever para o Estado de S.Paulo (18/07/2015), o crítico Luiz Zanin Oricchio observou que o livro descreve “práticas que bem podem servir de carapuça para parte da imprensa contemporânea”. Num dos trechos, um dos protagonistas ensina como produzir matérias com acusações que, mesmo sem provas, intimidam e acabam não sendo alvo de processos daqueles que foram difamados. A cínica lição ensinada pelo chefe é: não mentir, claro, mas distorcer a realidade só contando verdades.
Outra passagem do livro mostra como “editorializar” reportagens, isto é, como contaminar uma matéria factual por meio da seleção e inclusão de declarações de fontes que expressam a mesma opinião do jornal. No manual de redação do “Amanhã”, essas falas deveriam ser mais racionais e elaboradas em comparação com as falas escolhidas dos representantes de outro ponto de vista, também presente na matéria dentro do ritual perfeito de mascarar a imparcialidade.
O pano de fundo do romance é a realidade política da Itália a partir do pós-guerra, o que requer certa familiaridade com os personagens e meandros históricos inseridos na trama.
Mas as críticas tradicionais ao jornalismo estão longe de oferecer novidade para o apetite dos leitores. O que tem sabor especial são as teorias conspiratórias que pairam hoje sobre os acontecimentos. Alimentadas pelo espírito investigativo de destacado integrante da equipe editorial as ‘conspirações’ merecem instigante abordagem de Umberto Eco.
O pano de fundo da história diz respeito aos complexos dilemas jornalismo na sua vã tentativa de domar a subjetividade. Por um lado, o conflito entre transparência e informação ocorre no terreno minado das ocultações do poder político-econômico. Por outro, reproduzir ou reconstruir fatos significa admitir que a realidade (sobretudo o mundo da política) é assombrada por alucinações, versões, fantasias, delírios.
“Você tem dois coquetéis perfeitos, e já não sabe qual é o mais autêntico”, afirma uma personagem ao abordar as circunstâncias misteriosas que engendram a transformação de “exaltadas fantasias” em “indícios de realidade”.
Mais do que a crítica ao jornalismo sensacionalista, a originalidade do livro é apontar, com ironia e sutileza, que desconfiar dos jornais não basta. “O engano é um estado de espírito, e é o espírito do Estado” (p.198). Ou, de forma mais ampla: o engano paira sobre o espírito de nosso tempo.
(resenha: Armando Medeiros de Faria – Conexão Pública)