Plataforma de denúncias vai mapear casos de violência contra a mulher. Violências podem ser enquadradas em pelo menos seis grupos.
A festa acontecia no Centro de Vivência da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), era uma daquelas calouradas que reúnem estudantes de todos os cursos. Camila Costa (nome fictício para preservar a identidade da vítima), estudante de psicologia da instituição, também estava lá. Foi para se divertir, mas se tornou vítima de violência.
“Um colega me convidou para dançar. Mas ele provocou uma excitação antes de me chamar. Não era um convite para dançar, era um assédio intencional”, contou. Camila tinha 22 anos na época e descobriu que o verbo dançar pode ganhar novo significado entre um homem e uma mulher: assédio.
“Minha atitude foi, além do riso constrangedor, não ter atitude. Ele continuou excitado durante toda a dança. Depois nos afastamos completamente, mas não só os nossos corpos”, relatou Camila. O contato entre eles também foi quebrado.
Constrangimento, vergonha e medo. Reações que uma mulher sente ao ser alvo de olhares indecentes, de assédio descarado, de tentativa de estupro. Tudo isso dentro de uma instituição de ensino superior, local onde alunas esperam se sentir seguras.
Pensando em mulheres como Camila, o Grupo de Estudo e Pesquisa em Gênero e Mídia (GEM), da UFPB, lançou uma plataforma de denúncias de casos de violência contra a mulher dentro dos campi da instituição.
A plataforma “Um Grito por Elas: mulheres da UFPB contra a violência” funciona por meio da internet, no site do GEM, e pretende mapear os tipos e casos de violência na instituição. Assédio é apenas um deles.
“A violência contra a mulher – não só a física ou a sexual, mas também a intelectual, psicológica e moral – faz parte da cultura machista da sociedade, e a universidade não fica fora dela. Apesar de ser um centro de saber, cultura e conhecimento, onde se espera que seja um local desconstruído de padrões normativos de gênero, o que vemos nas universidades é apenas uma reprodução forte da cultura machista, e na UFPB não é diferente”, ressaltou a coordenadora do GEM, Margarete Almeida.
O funcionamento da plataforma é rápido e fácil. Professoras, alunas, servidoras e outras mulheres que possuem vínculo com a UFPB, precisam apenas preencher o formulário e enviar a sua história. O anonimato é garantido e a vítima pode se sentir segura.
Verbo também é violência
O Instituto Avon e o Data Popular realizaram uma pesquisa nacional sobre violência dentro das universidades do Brasil. Em todo o país, 10% das mulheres nas universidades já sofreram violência de um homem dentro da instituição ou em festas acadêmicas. No entanto, quando essas mulheres foram estimuladas com uma lista de violências, elas reconheceram que foram submetidas a muitas delas. O índice, então, subiu para 67%.
Esse dado mostra que muitas mulheres deixam de denunciar os seus agressores por não conhecerem os tipos de violência. Foi o que aconteceu com Amanda Sousa (nome fictício), de 21 anos, que não percebeu a gravidade do fato antes da repercussão.
A aula começava às 8h, mas Amanda entrou na sala às 9h. Era mais um dia de aula no Centro de Comunicação, Turismo e Artes (CCTA), na UFPB. Subiu as escadas, passou pelos corredores e foi encarar o dia cujo desfecho jamais esperava.
Estava atrasada, mas fez com que sua presença não fosse notada de imediato. “Na sala existem algumas bancadas com computador e as únicas carteiras desocupadas tinham a mesa pequena, onde meu computador não ficava bem ajustado”, contou. Amanda então se acomodou como conseguiu, de uma forma que pudesse conversar com o professor e escrever seus trabalhos no computador ao mesmo tempo.
Quando o professor percebeu a postura de Amanda, liberou a primeira grosseria. “Minha filha, você está querendo quebrar sua coluna?”, perguntou. Ela questionou. Como contou Amanda, a réplica foi autoritária e incisiva. Ele, na sua posição de professor, dava “uma aula de anatomia”, querendo mostrar que a posição da aluna estava incorreta. “E começou a dar uma aula de arrogância. Bem alto, como ele gosta de falar”, revelou Amanda.
Amanda estava bem do jeito que escolheu sentar, inclusive informou isso ao professor. Ele, no entanto, não aceitou e liberou a violência maquiada de segunda grosseria. “É melhor você corrigir (a postura) e deixar para se quebrar quando seu marido bater em você”, disse.
Amanda desligou o mundo nesse momento. Mas não é tão simples como ligar e desligar uma TV. No dia seguinte, Amanda já era assunto de, pelo menos, três pessoas no Centro.
Esse não foi o primeiro relato com o mesmo professor. Os casos são tão comuns e impunes que Amanda foi pra casa pensando que esse era apenas mais um show que o docente fazia com baixo público, mas alto cachê.
Tipificações de violência
A pesquisa definiu alguns tipos de violência contra a mulheres que vão muito além do assédio. Dessa forma, foi possível definir seis grupos de violência que podem auxiliar as mulheres da UFPB a formularem suas denúncias na plataforma Um Grito por Elas.
A mais comum delas é o assédio sexual, que são comentários com apelos sexuais indesejados, cantadas ofensivas e abordagem agressiva. A coerção também é uma violência comum, principalmente em festas universitárias. Enquadra-se na definição a ingestão forçada de bebida alcoólica ou drogas, ser forçada a usar entorpecentes sem conhecimento, ser forçada a participar de atividades degradantes, como leilões e desfiles.
Os casos de estupro, tentativa de abuso enquanto sob efeito de álcool, ser tocada sem consentimento e ser forçada a beijar alguém podem ser qualificadas como violência sexual. Além disso, qualquer agressão física poderá ser denunciada por violência física.
Na relação entre professores e alunos, a desqualificação intelectual e a agressão moral e/ou psicológica são as violências mais comuns. São as humilhações por professores e alunos, ofensas, xingamento por rejeitar alguma investida, músicas ofensivas cantadas por torcidas acadêmicas, imagens repassadas sem autorização e rankings (beleza, sexuais e outros) sem autorização.
Política generalizada
Camila Costa e Amanda Sousa são duas mulheres que não puderam evitar as violências que sofreram e também não precisavam fazer isso. Amanda não denunciou pela impunidade recorrente. Camila, pela falta de políticas internas na UFPB.
“Isso poderia mudar com um trabalho de conscientização do que é o patriarcado, o machismo e sua relação com as violências de gênero. Essa temática não chega a ser pauta dentro das instituições, daí tem-se o próprio ambiente acadêmico como espaço de violência”, explicou Camila.
De acordo com a vice-reitora, Bernardina Freire, a UFPB tem uma comissão de constituição da política de segurança da instituição, onde todos os tipos de violência são analisados de forma generalizada. “Está em elaboração o plano de segurança que envolve sistemas de monitoramento por câmeras, ampliação da segurança com mulheres no corpo de vigilância e para além disso, uma campanha educativa junto com a Comissão de Direitos Humanos para poder trabalhar tanto com os professores, como técnicos administrativos, servidores, alunos e terceirizados”, informou.
Ainda segundo a vice-reitora, a plataforma Um Grito por Elas vai auxiliar a instituição a mapear o que de fato acontece dentro da UFPB. “A plataforma vai contribuir para ampliar e mapear os tipos de violência ocorridos e estamos nos preparando para entrar com um trabalho junto com a universidade”, frisou.
Auxílio para as vítimas
O Grupo de Estudo que proporcionou o lançamento da plataforma de denúncias também estabeleceu uma parceria com a Ordem dos Advogados da Paraíba, por meio da Comissão de Combate e Impunidade contra a Violência a Mulher.
A Comissão é formada por Katiele Marques, advogada e presidente da Comissão, Iris Cristina Meira e Phaloma Costa. O espaço criado dentro do site permite que as vítimas de violência tirem suas dúvidas e, se assim desejarem, levem o caso para processos jurídicos.
O site do GEM disponibilizará uma F.A.Q. jurídico, com perguntas mais frequentes das mulheres. A partir dessas perguntas, as representantes da OAB responderão como a vítima poderá agir juridicamente e, em casos mais difíceis, poderá marcar uma reunião com uma das advogadas da Comissão para receber melhores encaminhamentos de suas ações.
O importante é não se calar e procurar ajuda. “Dependendo do caso e se a vítima resolver se identificar, iremos encaminhar o ocorrido para a rede. No casos anônimos, respondendo as perguntas. A ideia é que todas as perguntas e repostas fiquem tanto no site do GEM como no site da OAB, para que haja dois instrumentos de visibilidade”, ressaltou a advogada Katiele Marques.
Fonte: G1