Um esquema de novela brasileira

A opção pelos dramas de proprietários e herdeiros num certo esquema de novela brasileira pertence às maneiras como a televisão se insinua como autoridade cultural acerca de como é ou deve ser a sociedade brasileira no imaginário dos seus consumidores.

 

Em primeiro lugar: a propriedade. A novela que deseja explicar o Brasil, aquela das nove, do “horário nobre”, tem uma propriedade no meio. empresas, hospitais, shoppings, fazenda de escravos, de cacau, de gado, de fumo, de café. Algo que simbolize uma espécie de “Império”, título recente de uma novela de sucesso, cobiçado pela sanha de patriarcas e herdeiros. A verdadeira cena inaugural da trama é uma propriedade entre duas gerações. O time dos velhos, dos proprietários, do talento já consagrado na TV, dos papéis destinados aos galãs das antigas – incluindo por vezes vilões e vilãs velhos – e a geração dos novos, dos herdeiros legítimos e bastardos, bonzinhos e maus, que perfazem os papéis concedidos a jovens atores brancos e brancas que vêm às telas ditar a beleza nacional. Em “A Lei do Amor” a luta dos personagens Reinaldo Gianecchini e Vera Holtz (herdeiros) pelo patrimônio do patriarca interpretado por Tarcísio Meira é um exemplo modelar de um esquema que esgota muito da experiência dos últimos vinte anos na frente da televisão.

Pode-se objetar que o modelo é antigo e constitui uma das matrizes do próprio gênero literário do folhetim, surgido na França na primeira metade do século 19, do qual a telenovela é uma herdeira. Entretanto a insistência e repetição dessa fórmula, tende a reforçar certos esquemas de percepção no espectador consumidor que a TV intenta produzir diante da tela para atender seus anunciantes de bens consumo. Por outro lado, o hábito de assistir uma, duas ou três dessas séries ou novelas por dia tornou-se cotidiano e ansiamos por essas formas de entretenimento para entender o mundo por uma janela mais íntima e subjetiva que os jornais não podem nos oferecer. Assim, a opção pelos dramas de proprietários e herdeiros num certo esquema de novela brasileira pertence às maneiras como a televisão se insinua como autoridade cultural acerca de como é e\ou deve ser a sociedade brasileira no imaginário dos seus consumidores.

Esse esquema de novela fez da propriedade uma espécie de mediadora quase universal do melodrama comercial brasileiro. A atuação de Antonio Fagundes constitui uma das pistas mais significativas dessa fórmula artística fincada na propriedade. O ator tornou-se um verdadeiro especialistas nas ilusões patriarcais brasileiras. Rei do Gado, Rei do Café, Rei do Cacau, “Coronel do Nordeste”, Dono de Hospital, Dono de tudo, tudo, tudo… Um título de novela que sumariza seu verdadeiro personagem em quase tudo o que fez chama-se, apropriadamente: “O Dono do Mundo” – o paralelo revelador é José Mayer, o “dono dos corpos” femininos das novelas, intérprete da virilidade masculina, e segundo a denúncia de assédio sexual da figurinista Susllem Tonani, a vida anda querendo imitar a arte. O drama encenado por esses patriarcas se confunde com os dilemas da transmissão da propriedade à geração de herdeiros legítimos, em reunir fortuna e virtude. Ser rico não é fácil, nos explica a telenovela. Existem os interesseiros, os filhos sem bom caráter e os pobres invejosos. A novela, em seu catolicismo patético, ensina que os pobres que invejam os bens dos ricos são maus.

Há toda uma corte de vilãs nesse ponto. O horário nobre produziu verdadeiras Evas na conjunção entre seu desejo sexual ilegítimo – fora do casamento, sexo sem amor, ou desejo louco pelo mocinho já comprometido que a rejeita e outras faces do prazer em novelas – e a dilapidação do patrimônio do patriarca. As excelentes atuações da atriz Adriana Esteves como Sandrinha em “Torre de Babel” ou como Carminha em “Avenida Brasil” encarnou essa verdadeira serpente no jardim do Éden da família brasileira. Sandrinha e Carminha… o diminutivo diz muito sobre o imaginário da mulher brasileira na televisão onde gosto por sexo é outra marca registrada da vilania feminina. A implacável Beatriz, personagem de Glória Pires em “Babilônia” (2015), que branca e bem casada – via um golpe do baú – foi pra cama com seu motorista preto (personagem de Val Perré) nas barbas do marido empresário, é um exemplo típico. Transar com um negro pobre era signo de que ela era “capaz de tudo”, que a usurpação dos bens do marido era uma questão de capítulos. O adultério feminino, uma das faces do demônio na teledramaturgia, se realizado com subalternos, então, é sem-vergonhice sem remédio, luxúria pura.

As querelas entre patriarcas, mulheres, e herdeiros por um destino moralmente justo às heranças confere àa figura do bastardo uma intensidade especial. O drama desses enjeitados brancos ou quase da TV é possuir na pele, cabelos, e nos valores cristãos a legitimidade simbólica para esposar o patrimônio que lhes é negado até os últimos capítulos. Em geral, essa pessoa rica em potencial encenada por Leandra Leal em “Império” desconhece sua herança. Assim este tipo de mocinho ou mocinha só descobrirá sua verdadeira identidade quando tomar ciência dos seus direitos como futuro proprietário. “Herdo, logo existo”. A suprema união entre a ética, a grana e a beleza será o seu final feliz.

Nesse sentido, meu argumento é que a centralidade da propriedade na composição da intriga, presente nesse esquema de novela, é um elemento que configura as relações e simbolizações em torno de classe, gênero e raça, incidindo na hierarquização dos personagens na trama e das oportunidades de trabalho e visibilidade entre os atores. Em geral, a crítica à teledramaturgia insiste nos sérios problemas da ausência de atores e personagens negros bem como nos estereótipos sobre mulher e os homossexuais. Entretanto, é necessário atentar para o perfil dos diretores recrutados e a relação entre as escolhas artísticas que perfazem a composição da novela brasileira e as inflexões e clivagens daí decorrentes na representação das diferenças sociais e culturais.

Um exemplo marcante desse problema foi o interessantíssimo vilão e herdeiro gay Félix interpretado por Mateus Solano em “Amor à Vida” (2013). A sexualidade aquém da macheza exigida pelo código moral brasileiro lhe dotou das marcas da vilania feminizada de novela a que não faltou o expediente clássico do roubo de bebês. Mas o personagem conseguiu encenar na TV um beijo gay após anos a fio de preconceito. Para isso o vilão teve que virar mocinho ao fim da trama. Decaiu naquela pobreza regeneradora de novela quando a família descobriu suas maldades e o deserdou, e o personagem complexo do início ganhou o estereótipo daquela “bicha popular” que o telespectador brasileiro adora ver humilhada nos programas de humor. Por fim, a reconciliação com o patriarca velho doente interpretado por Fagundes foi o último pedágio apaziguador que o beijo gay pagou para vir às telas no horário nobre. A imagem da diferença que incomoda foi limpa de sua carga subversiva para obedecer aos valores da chamada família tradicional brasileira.

As dificuldades enfrentadas por Taís Araújo, uma das poucas estrelas negras da televisão, como protagonista em “Viver à Vida” (2009) são igualmente reveladoras. Conforme a atriz desabafou recentemente: “aquele texto não me dizia nada, eu me sentia a professora do Snoopy. Eu não fazia bem e não sei se tinha como fazer. Me sentia em uma areia movediça, patinei até o fim”. Nas novelas de Manoel Carlos, os altos e médios proprietários e os profissionais liberais de prestígio aí retratados não possuem adversários fora de sua classe social. É a paz das mansões e apartamentos sofisticados entre Copacabana e o Leblon. Sem oponentes na cena, esses ricos (ou quase) não brigam por dinheiro, mas por valores, paixões e formas de condutas, tonando-se o verdadeiro espelho da alma humana. O mundo dos brancos representa-se como universal.

A relação entre classe, gênero e raça nessas tramas é bem expressa pela romantização do assédio sexual entre patrões e empregadas domésticas que veio ao ar na relação entre os personagens de Alexandre Borges e Juliana Paes em “Laços de Família” (2000), retrato dessa calmaria boa, regada a whisky e champagne na beira da piscina. Após engravidar do patrão, a personagem Ritinha foi a assassinada pelo enredo no parto dos seus gêmeos e naturalmente a ex-patroa ficou com os bebês e todos foram felizes para sempre. Mas saindo das tomadas em cozinhas e quartos, para as da salas e espaços abertos, enquanto Ritinhas de “cores brejeiras” vão pro beleléu, a protagonista Helena, nome da heroína em todas as novelas recentes de Manoel Carlos, espelha as conquistas do chamado feminismo burguês. Mulher independente, geralmente têm filhos mas não é casada, legítimo sujeito de consumo (algumas tomadas são em shoppings e lojas), mantém o coração indeciso sobre os amores da juventude que voltam a cotejá-la, embora se envolvam com garotões e traiam algumas vezes. Retrato de uma liberdade feminina pautada no consumo e algum sexo.

A Helena de Taís Araújo, uma modelo internacional em ascensão que vinha de baixo, constituía precisamente o adversário social cujo protagonismo é sem lugar nesse esquema de novela. O feminismo burguês das Helenas de Manoel Carlos era pouco para os dramas que a personagem carregava no corpo. Porém o enredo não encarou o problema da ascensão social do negro frente a um público ávido em assisti-lo em meio à polêmica acerca da adoção de ações afirmativas e cotas para negros nas universidades brasileiras. A decisão foi política. Na semana do dia 20 de novembro, dia da consciência negra, veio às telas uma das cenas mais repugnantes da teledramaturgia brasileira. O tapa da alvíssima Teresa, personagem de Lilia Cabral, na então protagonista que suplicava ajoelhada. A Helena negra, como personagem principal, morreu ali. O tapa marcou giro da trama que a partir dali deslocou o foco central do enredo para o drama de uma herdeira, branca, rica, mas que um acidente havia feito paraplégica. A antagonista tornou-se protagonista. E assim se faz uma Alinne Moraes na TV. Essa jovem e talentosa atriz emocionou o país com a interpretação dos sofrimentos de uma herdeira cuja pele era indício de que tinha, como se diz, “toda uma vida pela frente”.

Isso realmente tem sido para uns poucos.

Texto: Matheus Gato, doutor em sociologia pela USP (Universidade de São Paulo). Desenvolve pesquisa nas áreas de relações raciais e sociologia da cultura.

Fonte: Nexo jornal